sexta-feira, 18 de março de 2011

O enforcado

O corpo balançava ao ritmo do vento. Os pés roçavam de leve no tapete, às vezes, esbarrava num copo e derramava um último gole. Os dedos pareciam desenhar linhas, círculos. Alguma pintura abstrata tomava forma. Durava apenas um instante, o calor logo evaporava aquela tinta singular. Apenas o cheiro indicaria a forma. O quadro tinha vontade de existir, procurando outro meio de expressar, encontrou o sangue. Gotículas pingavam da língua mordida, escorriam pelo corpo em linhas trêmulas. Escreviam no tapete, no chão - algo belo - difícil de reproduzir: uma carta de suicídio.


Dúvidas

Um beijo pode ser amor, um abraço também. Gestos com os dedos podem significar muita coisa. Cruzar as pernas: vontade de urinar ou defecar. Mostrar a língua é feio. Aperto de mãos: acordo - muito prazer, me chamo Francisco. Rir de alegria, chorar de emoção - é muito! Suspirar, prazer... ou tédio. Gemer é sexo. E a dor? Um gemido de dor - é diferente. Vida? choro de criança recém-nascida - seja bem-vindo. E a morte como é? Como comunica sem palavras? Quem consegue, eu acho, morre no processo.
Ano Novo
Havia alegria e melancolia no Ano Novo. Chovia pouco. A água não incomodava. Misturava-se a cachaça deixando-a leve e saborosa. Pontos de festa espalhavam-se. Entre eles: espaços vazios. Os espaços vazios eram mórbidos e taciturnos. Tinham mais significado num dia onde era difícil aceitar sua existência. Ali estavam em toda sua grandeza: uma praça, uma rua, um corredor. Vazio vivo e pulsante. A felicidade sempre incomoda quando colocada ao lado da miséria alheia.

domingo, 11 de outubro de 2009

O Campo

Caminhando pelo campo é comum deparar-se com diversas flores, contudo nenhuma chama tanta atenção como a rosa, crescendo sozinha acima das outras rubra incandescente. Todos são enganados pelo seu afrodisíaco aroma. As outras flores veem indignadas aquela vermelhidão, como o sangue que corre nas veias dos Homens. Homens que as pisoteiam sem lhes olhar nem de soslaio. Tentam, inutilmente, tornar suas cores e aromas em superlativos: azulíssimo, azedíssimo, amarelíssimo, docíssimo... Tristíssimas tentativas.

Resolutas as pernas caminham até a rosa belíssima. Ali parados, os olhos ressecados apreciam: as pétalas vermelhas sobrepostas uma ao lado da outra, umidecidas pelo orvalho, o orifício apertado no meio, os espinhos eretos e rijos. Indescritível é a sensação diante do objeto de desejo. As mãos tocam as pétalas molhadas e são penetradas pelos grandes espinhos. O sangue escorre para dentro do orifício negro. A boca solta um suspiro longo e dolorido. A rosa cobrou seu preço pelo oferecido, mas o corpo não se satisfaz. De súbito, mãos agarram o caule e puxam com brutal violência. As raízes se desprendem do solo, tentando agarrar cada grão de terra. O sangue escorre pela rosa, pelas mãos. As pernas caminham para longe dali, no entanto antes de alcançar o descampado o corpo não sente o suspiro, não sente a dor. A rosa secou, o sangue todo escorrera, agora estava branca, preta. As mãos soltaram e com um baque surdo a rosa caiu no solo.


As flores olhavam de cima para baixo, reparando a secura que outrora foi o esplendor do campo. Ali assistiram o risco da indiferença, do desejo, da vontade. Sem raízes nada somos. Os olhos, as pernas, as mãos, o corpo não se satisfazem, rapidamente almejam, possuem e destroem. Porém de que vale nossas cores e aromas se não pudermos ser tocadas e bebermos do sangue dos Homens. A rosa teve o que nenhuma de nós jamais terá. Logo crescerá outra, única como sempre, acima de nós, pois nesse campo de aromas e cores tão diferentes tornamo-nos homogêneas.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Sonho

A vida é similar a um sonho, a grande diferença é que se pode acordar de um sonho ruim. Será possível acordar de uma vida ruim? Caso acontecesse, aonde acordaríamos? Acredito que acordar da vida seria morrer, pois como tudo se completa e os opostos se atraem, faria sentido que, ao invés, de abrir os olhos; os fechássemos para acordar. Que mundo maravilhoso seria, se fechássemos os olhos para viver e os abríssemos para sonhar.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Desejo

O desejo rói minhas entranhas. Aqueles gafanhotos - essas pragas - sufocam meu Amor, mastigando cada ternura que dele sai. As palavras escapam feito moscas e revoam a carne morta da Tristeza. Essa entende cada agonia, cada desespero de viver.
Às vezes, são tantos os gafanhotos a se alimentar do meu amor que os vomito como Rancor. Cheio de cicatrizes, fedido e amorfo. Ali, revirando-se na pocilga, rapidamente, o engulo. -Sim, pois dele nascerá o Ódio que destruirá todas as pragas, tamanha sua violência. Nele me certifico de meus desejos.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Enterrado


As ripas de madeira cercam meu túmulo. Os vermes formam um câncer, enquanto devoram minha carne, mexendo e remexendo meus órgãos podres. Os ratos me visitam, fazendo cócegas em meus dedos sujos de terra, encontrando de baixo das unhas, carne fresca. Minha boca vomita podridão, soltando miasmas. O pouco que resta são meus olhos dilatados, que assistem imóveis meu corpo dilacerado virar adubo.